Economia de Cuidados: o trabalho remunerado e a sobrecarga da mulher em disputa
19 de março 2024
Foto: Roberto
Parizotti
Cuidar de um bebê, cuidar da casa, cuidar para não se machucar, cuidar
de um idoso com diferentes graus de dependência, cuidar das finanças, cuidar
das necessidades das crianças. Em uma família, tudo é cuidado. Essas atividades
são fundamentais para o bem-estar e a reprodução da vida, mas são marcadas por
desigualdades de gênero, de raça, sociais e territoriais.
Não é novidade, por exemplo, que esse cuidado é distribuído de forma
injusta e desigual entre homens e mulheres dentro e fora de casa. Tão
importante quanto é dizer que tampouco esse cuidado feminilizado é feito da
mesma forma entre mulheres brancas e negras.
Mulheres gastam em média 21h18 por semana com
atividades domésticas e de cuidado, enquanto os homens gastam em média 11h48,
segundo dados da pesquisa Outras Formas de Trabalho, feita a partir de dados da
PNAD (Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio) de 2022.
Se para as mulheres brancas essa cifra era de 21 horas semanais, para as
negras é de 22,3 horas. Cenário que compromete as possibilidades de geração de
renda e de autonomia econômica, aumentando a pobreza e a desigualdade.
Cuidado toma tempo e dá trabalho. Todas essas atividades do cotidiano,
seja aquelas feitas de forma remunerada, como as empregadas domésticas, babás,
cuidadoras, cozinheiras, enfermeiras, ou de forma não remunerada, como se
costuma ver mães, tias, avós e mesmo meninas fazendo, estão dentro do que se
chama hoje de Economia de Cuidados.
Essa é a economia que dá conta de tudo o que é
necessário para a sustentação da vida no dia a dia. Botar a mão
na massa das tarefas do cotidiano de todos, no entanto, não é, ou não deveria
ser, apenas das mulheres em uma família ou comunidade.
É papel do Estado atender às necessidades da população, garantindo a
reprodução humana e o bem-estar de toda população. E cuidar desse bem-estar
terá impacto na força de trabalho, na economia e no desenvolvimento da
sociedade como um todo.
Isso significa creches,
atendimento à saúde, lavanderias públicas, cozinhas comunitárias, e também
organizando o trabalho remunerado dos cuidados, dando condições dignas para
esses trabalhadores.
A Política Nacional dos Cuidados
Para jogar luz nesse tema, que se em uma ponta sobrecarrega a mulher e
em outra gera uma grande demanda por profissionais qualificados, valorizados e
equipamentos públicos, o governo federal está elaborando a Política Nacional de
Cuidados.
Em outubro de 2023 o governo lançou o Marco Conceitual da Política
Nacional de Cuidados, e instituiu um GTI (Grupo de Trabalho Interministerial).
São 20 Ministérios e mais três entidades públicas - IBGE (Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística), Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e Fiocruz
(Fundação Oswaldo Cruz) - trabalhando juntos para elaborar a política.
Esse GTI é coordenado pela Secretaria Nacional de Cuidados e Família, do
Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome,
chefiada pela socióloga Laís Abramo, em conjunto a Coordenadoria Geral de
Políticas de Cuidado, do Ministério das Mulheres, chefiada por Letícia
Perez.
O Grupo tem três grandes tarefas: propor a Política Nacional de
Cuidados, que são regras, leis e diretrizes organizadoras; montar o Plano
Nacional de Cuidados, que terá função de dizer como as políticas públicas serão
executadas na prática pelos Ministérios, e, por fim, elaborar um diagnóstico
sobre o contexto dos cuidados no país. A meta é que esses trabalhos sejam
entregues a partir de junho deste ano.
Laís Abramo explica que a criação da Política Nacional de Cuidados parte
do princípio de que todas as pessoas, ao longo da vida, ofertam e demandam
cuidados, sobretudo crianças, adolescentes, idosos e pessoas com
deficiência.
“A gente considera que o cuidado deve ser entendido como um direito de
todas as pessoas ao longo do seu ciclo de vida e também como um bem público”,
afirma.
A secretária da Mulher Trabalhadora da CUT,
Amanda Corsino, tem feito esse debate junto com o GTI do governo federal. Ela
reafirma a necessidade de mais investimento em equipamentos e políticas
públicas que ocupem o espaço criado pelas necessidades de cuidados, como mais
vagas em berçários e no ensino infantil, ampliação do ensino integral nas
escolas, assim como mais restaurantes e lavanderias públicas.
“Temos reforçado com o governo também a necessidade de acolhimento e
amparo aos trabalhadores de cuidados que fazem o turno noturno, como é comum em
unidades de saúde e instituições de acolhimento de idosos. Uma mãe solo sem
rede de apoio não tem onde deixar seu filho à noite, por exemplo”, explica a
secretária.
Nos cuidados com idosos, tanto dentro de instituições públicas e
privadas quanto no trabalho que cuidadoras e cuidadores fazem na casa dos
próprios empregadores, o período de trabalho feito à noite é uma condição e um
contexto importante de ser levado em conta.
A crise dos cuidados no Brasil: um país que envelhece
O diagnóstico que mostrará em que pé o Brasil está é fundamental para
que o governo possa incidir (explicar melhor). Na França, por exemplo, os
idosos representam de 14% a 20% do total da população, e as políticas públicas
desempenham um papel central no cuidado.
Os idosos com 60 anos ou mais e com alguma perda de autonomia têm o
direito de receber o que os franceses chamam de “abono personalizado de
autonomia”, independentemente do nível de recurso de cada um, embora o
valor desse abono leve em conta esse nível.
O abono deve ser usado para pagar as despesas que o idoso precisa para
ficar em casa e contar com cuidadores profissionais, ou parece ser acolhido em
uma instituição. Os familiares desse idoso também podem receber o
benefício.
No Brasil não há políticas públicas exclusivas para os cuidados de
idosos, como no exemplo francês. Para se ter uma ideia, na cidade de São Paulo,
a mais populosa do país, a oferta de instituições públicas de acolhimento aos
idosos é muito abaixo da demanda.
Em 2018, o número de idosos na capital paulista era de 1.733.664 (14% da
população da cidade), enquanto o número de vagas nessas instituições era de
19.660. Embora nem todos precisem de acolhimento, a defasagem é muito grande.
Os dados são do Seade (Sistema Estadual de Análise de Dados).
O envelhecimento da população é um sinal vermelho para o vazio de
políticas públicas brasileiras nesta área. Dados do IBGE mostram que de 2010 a
2022 (portanto em 12 anos), o número de idosos no Brasil cresceu 57,4%. Neste
ritmo, no próximo ano o Brasil ocupará o 6º lugar no ranking mundial de número
de idosos.
Por outro lado, as mulheres e os casais brasileiros estão diminuindo a
quantidade de filhos, e são os filhos que, numa sociedade cujo cuidado é
estruturado na organização familiar, se encarregam, quase que sem nenhum tipo
de apoio, das necessidades dos mais velhos.
A sobrecarga da mulher
Nem todo filho, e quase sempre uma filha. Filhas que têm suas vidas,
suas casas, suas próprias famílias, e que estão no mercado formal de trabalho.
Isso significa que a figura daquela mulher da família, às vezes solteira,
viúva, às vezes uma tia, uma avó, que sempre trabalhou em casa e cuidou de
todos, com disponibilidade de tempo, está em falta no mercado.
“Isso é muito bom para a independência financeira e autonomia das
mulheres, que têm o direito de gerir o seu próprio tempo como por bem entender,
vemos isso com bons olhos, mas, enquanto Estado, precisamos agir para suprir
essas necessidades”, afirma Letícia, do Ministério da Mulher.
Como esse trabalho de cuidado acontece na prática e se organiza numa
determinada sociedade? Todas as pessoas, ao longo do seu ciclo de vida, vão
precisar em algum momento.
A socióloga Helena Hirata, estudiosa do tema na França, no Japão e no
Brasil, afirma no livro O Cuidado - Teorias e Práticas, que há um
equívoco em deixar de lado o fato de que a vida é vulnerável, ou seja, qualquer
uma pode precisar de cuidado em qualquer fase da vida, e não apenas quem tem a
autonomia limitada, como crianças, parte dos idosos e pessoas com deficiência.
O problema é que na atual organização social brasileira, esse trabalho
de cuidado ainda é visto como se fosse uma vocação natural das mulheres. Uma
injustiça histórica que impacta a vida da mulher e precisa ser corrigida, e por
isso que as pensadoras no tema falam em sociedade do cuidado, que deve envolver
a família - homens e mulheres em divisão equânime do trabalho -, governo,
empresas e também a comunidade, os territórios.
“O mais urgente é construir políticas considerando o sujeito que cuida.
É preciso transformar essa realidade e transformar a percepção da sociedade
sobre os cuidados de modo a promover a co-responsabilização, tanto de gênero,
entre mulheres e homens, como social. Se as famílias hoje são mais
responsabilizadas, o Estado também precisa ser responsabilizado, a comunidade,
as empresas. O mais urgente é firmarmos essa perspectiva transformadora do
cuidado”, defende Letícia.
Ao não ser reconhecido como um trabalho, essa mulher não é valorizada.
Muitas vezes, significa um número muito grande de horas diárias dedicadas a
esse tipo de trabalho que vão criar barreiras para a inserção profissional das
mulheres no mercado, para a conclusão das suas trajetórias educacionais, para o
lazer e para a vida pública.
Por isso, a garantia do direito ao cuidado, explica Laís, está
“relacionada também com a garantia do direito à igualdade de gênero, que as
mulheres tenham os mesmos direitos que os homens”.
No Brasil, hoje 16% de todas as mulheres que estão no mercado de
trabalho são trabalhadoras domésticas. Segundo o Ministério do Desenvolvimento
Social, os trabalhadores do setor dos cuidados - trabalhadoras domésticas,
cuidadores de idosos, de pessoas com deficiência, auxiliares de enfermagem, as
trabalhadoras domésticas são 25%.
Assim como no caso das trabalhadoras domésticas, por não ser um tipo de
atividade que não é considerado um trabalho, “por ser considerado algo que
quase teria que ver com a suposta natureza feminina, esse trabalho é muito
desvalorizado”, explica Letícia.
A desvalorização desse trabalho impacta em quem desempenha o cuidado
remunerado, e que hoje não há nenhum tipo de legislação, proteção social e
formação. “Cuidar de um idoso é muito diferente do que cuidar de uma criança,
por exemplo. E muitas vezes esses trabalhadores estão dentro das casas, então é
preciso organizar e valorizar essa atividade”, complementa Laís.
Por um trabalho e uma vida decente
A coordenação do GTI do governo federal que se debruça sobre a Política
Nacional de Cuidados já sabe, por exemplo, que são as mulheres as grandes
encarregadas (e sobrecarregadas) por esse trabalho.
Sabe também que são as mulheres negras em maioria, e que há diferenças
importantes de suporte a essas mulheres a depender do lugar onde vivem em uma
cidade, ou da região onde vivem no país.
Por esse motivo, Laís explica que o governo está em contato permanente
com estados e municípios. Nas regiões Norte e Nordeste, por exemplo, a oferta
de creches e berçários é menor em comparação com as regiões Sul e
Sudeste.
Ou seja, o trabalho do cuidado vai impactar mais ou menos na vida de uma
mulher que desempenha esse papel se em seu bairro houver ampla oferta de
serviços públicos, como transporte público, creches, escolas, unidades de
saúde, trabalho, comércio.
Em novembro de 2023 a CUT participou a convite da UNI Global Union de um
extenso seminário que debateu o tema com entidades sindicais filiadas à UNI,
mas também representantes dos governos na América Latina.
Nessa ocasião, o governo brasileiro pode apresentar a Política Nacional
de Cuidados, e as organizações de trabalhadoras e trabalhadores reforçar a
necessidade da Economia de Cuidados ser pensada com mais intensidade a partir
da perspectiva de quem cuida.
A secretária de Comunicação da CUT, Maria Faria, que integra o Conselho
Nacional de Assistência Social da central, participou do encontro. “Estamos
discutindo o escopo do que é esse trabalho. Como será a regulamentação, a
formação dessas cuidadoras e cuidadores, como os profissionais da saúde se
incorporam nesse setor, quais são as melhores condições para fornecer esse
trabalho, de maneira que ele seja qualificado também para quem precisa dele”.
Por Carolina Servio/CUT Nacional